O jeito que a gente compra as coisas mudou drasticamente nos últimos dois séculos, passou de uma atividade que fazíamos por necessidade para uma compulsão ansiosa que permeia todas as áreas da vida.
O que se vê é a ascensão da cultura global hiperconsumista:
- impulsionada pelo marketing,
- financiada pelas grandes corporações
- e pautada no individualismo.
Essa tríade se instala e se desenvolve de formas diferentes em cada país e tem se demonstrado catalisadora dos abismos sociais em economias marginais.
Já no fim do século XIX, a problemática do consumo vem tomando forma entre pensadores influentes. Em 1899, o economista Thorstein Veblen publicou a “Teoria da classe do lazer“, onde observa que consumir é uma nova forma de socialização e de moral, além de ser um diferenciador social, como também escreve em meados do século XX o sociólogo Pierre Bourdieu em seu livro “A distinção: crítica social do julgamento“.
Algumas décadas depois, mais de cem anos após Veblen, o filósofo Gilles Lipovetsky já consegue fazer uma temporalização própria para a questão do consumo e daquilo que ele e seu contemporâneo Zygmunt Bauman (filósofo e sociólogo), vão chamar de cultura do hiperconsumo. Segundo a periodização de Lipovetsky feita em seu livro “Felicidade Paradoxal”, lançado em 2006, há três etapas do capitalismo do consumo.
1. A primeira, tem início em 1880 até a segunda mundial, e é caracterizada pelo que o autor chama de “democratização do desejo”, época na qual tecnologias movidas à eletricidade mudam para sempre a forma de comunicação e de locomoção.
O aumento da produtividade começa a gerar excedente e há novas formas de distribuição dessas mercadorias, como as grandes magazines. Ir às lojas de departamento se torna uma forma de lazer, porém era de costume guardar os esparsos excedentes do trabalho, era preciso convencer as pessoas a comprarem as novidades.
Assim começa o refinamento do marketing de massa e a invenção de grandes marcas, que trabalham no imaginário das pessoas, antes acostumadas a comprar por indicações diretas – agora o cliente confia na marca e o intermédio do vendedor é menos decisivo para a compra.
2. A fase seguinte, entre 1950 e 1970, é o momento em que novas metodologias de produção tayloristas e fordistas mudam a forma de trabalho e de se pensar no tempo através do relógio de forma metrificada, quantificável através da capacidade de criar mercadoria. Nesse momento também surgem as primeiras formas de obsolescência dirigida, com produtos de menor durabilidade, para que haja mais rotação de compras. Período pós segunda guerra mundial, onde finda a segunda revolução industrial, a produção está à todo vapor, mas as pessoas ainda precisam ser convencidas de que precisam comprar. Segundo o autor,
“No começo dos anos 1960, enquanto a publicidade ganha novos espaços, uma família americana já está sujeira a cerca de 1500 mensagens de propaganda por dia.”.
3. A partir dos anos 70, o filósofo identifica como a terceira e última fase de consolidação do hiperconsumismo, elementos como marketing de massa, produção otimizada e obsolescência programada são práticas comuns na indústria e amplamente discutidas na academia.
Em cem anos, o consumo de subsistência sofreu um estiramento sistemático por via da persuasão em massa e aumento da disponibilidade de produtos. Se, de início, o marketing instiga a compra de produtos que denotem uma classe social mais nobre, que Bourdieu trás no seu estudo de capital cultural como representação de classe, agora o consumo não é mais voltado a ser um diferenciador social, mas passa a ser focar no íntimo das pessoas. Não se busca mais a ostentação, mas a experiência individual.
Em 2007, Bauman intitulou uma de suas obras de “Vida para consumo“, em que diz que o consumismo passa a ser um acordo social e se expande para todas as áreas da vida, desde a medicalização até a sexualidade. O controle do corpo, a obsessão por tornar tudo estético, a ansiedade, a busca incessante pelo novo e pelo belo são características dessa nova realidade, a distração e o prazer tem um alto valor. Lipovetsky delimita “Quando as lutas de concorrência não são mais a pedra angular das aquisições mercantis, começa a civilização do hiperconsumo.”, ou seja, comprar não é mais só uma questão de status, é uma compulsão socialmente aceita – mas muito prejudicial para nossa saúde mental quando se trata de dívidas e meios de subsistência, e também, é claro, para o meio ambiente, como esta cada vez mais evidente.