Cait Flanders é uma escritora canadense de 30 e poucos anos que, aos 29, depois de pagar todas suas dívidas, decidiu ficar um ano sem comprar nada. Não porque precisava muito poupar, sua carreira ia bem, estava estável, mas ela queria saber até que ponto comprar coisas tomava parte de sua vida e documentou essa jornada em seu blog que já era um certo sucesso, onde ela falava sobre finanças pessoais, sair das dívidas, viver uma vida intencional, frugal e minimalista.
“Se você não substitui um mal hábito por um novo hábito, é provável que se torne “relapso” e volte a seus hábitos antigos.”
O desafio de não comprar nada deu tão certo que ela resolveu estender por mais um ano e suas impressões mais íntimas estão no livro Year of less: how I stopped shopping, gave away my belongings, and discovered life is worth more than anything you can buy in store – O ano do menos: como eu parei de comprar, dei minhas coisas, e descobri que a vida vale mais do que você pode comprar na loja – sem tradução para o português ainda, portanto todos os trechos aqui nesse post são traduções livres.

Demorei tanto para escrever uma resenha desse livro, que a Cait lançou outro, o Adventures in Opting Out: A Field Guide to Leading an Intentional Life – Aventuras de quem caiu fora: O guia de campo para guiar uma vida intencional. Então esse post é um 2 em 1, aqui vão minhas impressões sobre ambas as obras da autora:
No primeiro livro, Cait conta as regras de seu ano sem compras – ela poderia comprar comida e itens de higiene, por exemplo – e narra detalhes de desejos de consumo que eu e você até já normalizamos e que, quando colocados em palavras, parecem meio bestas ou até absurdos, por exemplo: “Uma das maneiras de gastar dinheiro sem pensar é comprar 2 livros ao invés de um para completar um valor e conseguir frete gratuito.”
Quantos minutos ou horas de vida você gasta se atentando a detalhes minuciosos e tomando pequenas decisões totalmente estúpidas sobre compra de bens materiais? (que no fim acabamos nem usando) Eu admito que já gastei boas horas.
Motivação
Para manter a motivação de ficar um ano sem comprar a autora se lembrava das coisas que já tinha em casa e daquelas das quais tinha se desfeito no início do desafio: muitos daqueles objetos foram comprados para o que ela chama de ‘versão ideal de mim‘ e provavelmente as coisas que ela desejava comprar também serviam para suprir o mesmo propósito.
Em 29 anos, a autora diz ter comprado e guardado a maior parte de seus pertences para ser alguém que supostamente esperavam que ela fosse. Com o tempo, ela percebeu que era mais feliz quando não focava sua atenção no que poderia ter ou no que deveria ser. Decidiu que seus valores não poderiam ser baseados nas coisas que desejava, começou a ver mais valor em si mesma como ela era e a internalizar que ela não devia nada ao mundo: fazer o que queria fazer já era o suficiente – já ouvi falar que essa questão é muito recorrente para mulheres, que nunca estão completas e sentem que tem que fazer mais para serem válidas e aceitas.
“A parte mais difícil de não poder comprar mais nada, não era deixar de comprar coisas novas – era ter de sentir físicamente o confronto dos meus gatilhos e mudar minha reação a eles.”
Fica claro no livro que a Cait passa a ressignificar muitos pontos da suas memórias, ela diz que a história que você conta a você mesma é muito importante para manter seus objetivos. De alguma forma, da pra perceber que as coisas ao seu redor ficam diferentes, principalmente seus relacionamentos, mas isso ela só vem trabalhar mais a fundo no segundo livro. Afinal, se você decidir mudar de vida, aderir ao minimalismo ou qualquer outro estilo de vida mais intencional, vai perder amigos e ficar sozinha?
“Eu queria estar cercada de pessoas que preferiam viver do que trabalhar, passar o tempo ao ar livre do que online, e fazer as coisas por eles mesmos ao invés de pagar por todo tipo de conveniência.”
Álcool
Outro tópico que fica bastante evidente nesse primeiro livro, é a época em que Cait parou de beber álcool. Ela não era dependente, mas tinha começado a beber cedo e sentia que tinha feito muitas escolhas ruins por conta desse hábito.
Me identifiquei muito com essas passagens, principalmente com a reação negativa das pessoas quando ela tomou a decisão de se tornar abstêmia. Fumio Sasaki também comenta, tanto do seu livro sobre minimalismo, quanto no de hábitos, sobre como, apesar de não ser um alcoólatra, também prefere ser totalmente abstêmio do que beber esporadicamente.
“Parar de beber me ensinou a ouvir a mim mesma. Como fazer o que é certo para mim. Como ficar só em uma sala lotada. Como sentir meus sentimentos. Como confiar que eu sou resiliente e posso lidar com qualquer situação em que me encontrar. Como construir relações mais significativas. Como ser auto-consciente. E como deixar os outros se expressarem também.”
Cait percebeu que descontava suas ansiedades e questões subconscientes mal resolvidas tanto em compras, quanto em álcool e, ao parar com os dois, notou com mais clareza até mesmo as sensações físicas que sua ansiedade trazia e identificou outras duas válvulas de escape: comer em excesso e ver TV.

O segundo Livro – Mudar de vida
O segundo livro é um guia para opt out, que pode ser traduzido como ‘cair fora’, ‘se descadastrar’, ‘escolher não fazer parte de uma atividade’, ‘parar voluntariamente de estar envolvida’… e não conta só a história da autora, mas é um compilado de relato de muitas pessoas que topam compartilhar como foi tomar caminhos diferentes dos que eram esperados delas em seus meios sociais. Questões que aparecem nesse livro: ‘ter filhos ou não – e em qual idade’, ‘comprar ou alugar’, ‘ficar ou ir’, ‘empreender ou subir na escada coorporativa’…
“Eu aprendi várias vezes que cada pequena mudança que você faz paga juros compostos. Te ajuda a fazer outra mudança, outra troca de paradigma, outra decisão de viver de uma nova forma.”
Dois anos após o primeiro lançamento, da pra perceber que a Cait não quer manter o mesmo ar de blog no livro, tampouco de confessionário: ela comenta muitas vezes sobre a importância de resguardar suas intimidades, estabelecer limites e fazer terapia. Apesar de dar certo contexto sobre sua vida pessoal, ela o faz justamente com o intuito de incentivar a leitora a buscar também explorar quais são as nuances de sua própria história.
Talvez você já tenha ouvido uma vozinha interna pedindo para mudar algo, aquela ideia que vem do nada ‘e se eu fizesse tal coisa?’. Você não sabe muito bem de onde vem e muito menos qual é o melhor caminho para seguir esse ‘chamado’, mas uma coisa é certa: se todas as pessoas ao seu redor são como você, nenhuma delas vai ter essa resposta ou vai sugerir que você faça alguma mudança “talvez as pessoas nem pensem sobre isso, mas você acha que se sentiria tão melhor se trocasse de roupas ou se parasse de beber”.
As pessoas próximas a você já se acostumaram com sua ‘versão atual’, pois os seres humanos preferem coisas previsíveis, tanto para economizar energia, quanto para construir confiança.
A questão de tomar alguma atitude em relação a vontade de mudar é meio difícil mesmo, as pessoas demoram para construir o que já tem e não sabem o que pode acontecer se mudar as coisas de lugar. Porém Cait argumenta que, desde que seja feito um pequeno plano, sem sair do orçamento, muitas aventuras nem são tão arriscadas assim. “Basta ajustar a mudança de acordo com seu nível de tolerância.”
“Nos mantemos ocupados com nossas rotinas, vamos com a corrente, fazemos o que sempre fizemos – em todas as áreas de nossas vidas – e acreditamos nas histórias que nos contaram, ou que contamos a nós mesmos, sobre como e porquê as coisas são como devem ser. Nos prendendo a essas rotinas e histórias, não nos damos o tempo e o espaço para apertar o ‘pause’, olhar objetivamente para nossas histórias, e perguntar a nós mesmos se é isso que realmente queremos.”
Tipos de mudanças
Os exemplos do livro não eram tão radicais, teve o caso do moço que queria fazer algo diferente em seu empreendimento, ele não mudou totalmente o plano de negócios, mas decidiu testar novos produtos.
Teve o caso da moça que, como Cait, parou de beber, mas não porque já vinha pensando nisso como um problema, mas apenas porque uma pessoa perguntou pra ela se ela já tinha tentado e, de repente, esse pareceu um desafio interessante.
As vezes pode ser meio difícil dizer para as pessoas que você não tem um objetivo específico, mas que gostaria de mudar uma ou outra coisa em sua vida. O medo do julgamento alheio é quase material “Isso me faria parecer entediante, ou mediana, ou medíocre, ou preguiçosa”, mas a ideia do **Opt out que a autora trás é muito mais uma decisão interna do que externa: não precisa necessariamente ser anunciada, não é preciso provar nada para ninguém e a coisa a ser mudada não precisa ser nada incrível, grandioso ou fenomenal.
Amizades
Mudar antigos hábitos ou testar novas possibilidades, porém, pode ser bem difícil de ser feito sozinha “você quer por perto a pessoa que vai te ajudar a ficar nesse novo caminho e vai fazer o que você sente que é o certo”, é bom encontrar pessoas que parecem entender o que você esta tentando fazer, elas não precisam ser suas melhores amigas e voce não precisa ser a pessoa que entende elas de volta. Nem sempre essas pessoas são muito parecidas com você, elas apenas veem valor na mudança e respeitam suas decisões.
No decorrer do livro, Cait conta sobre seus colegas que gostam de caminhar nas montanhas com ela, os que são escritores também e vários outros casos, muitos deles tem rotinas e vidas totalmente diferentes dos dela, mas são bons amigos e boas companhias para as atividades que ambos tem em comum – o que pode ser apenas tomar um café e bater papo.
“As vezes você vai encontrar alguém uma vez e vai ser o suficiente. E as vezes você vai encontrar ela uma segunda ou terceira vez, cada encontro melhor que o outro. Mas não necessariamente.”
A autora diz que, quanto mais autêntico é o caminho que se escolhe seguir, mais você descobe que, por mais diferentes que as pessoas sejam, é possível que tenham coisas em comum e que podem ver valor uns nos outros. O que une as pessoas pode justamente ser o fato que que prezam pelas diferenças.
As coisas mudam
O livro bate muito na tecla de que as coisas são efêmeras, tanto as relações que temos, quanto as condições das decisões que tomamos. Deixar ir, confiar no processo, observar as mudanças, esses são recados que Cait passa de várias maneiras. Aqui vão quatro exemplos de como as coisas, inevitavelmente, mudam:
- Pode ser que você tentou fazer algo muitas sem sucesso. Depois de anos tentando, você esta quase desistindo e lamentando que isso não é pra você, mas daí, um belo dia, rola! Esse foi o caso dela com o álcool, ela tentou parar de beber por anos, chegou a dizer para as pessoas que ia parar e não conseguiu, mas em um certo momento, rolou! E agora ela é abstêmia. Ela não tentou nada de diferente do que das últimas vezes, o comprometimento foi o mesmo, mas dessa vez ‘funcionou’.
- Parece que você não esta indo para nenhum lugar, que suas decisões foram erradas ou que a vida não tem nenhum sentido, mas passa alguns meses ou anos e você percebe que esta tudo bem exatamente do jeito que esta. “Opting out não é uma corrida. Você não precisa provar nada para ninguém e não precisa ser uma luta contínua. Você tem as rédeas para continuar em cada parte do caminho.”
- Há uma concepção, que ela considera ocidental, de que se deve pensar nos próximos passos: qual será a próxima meta e qual será a próxima medida de sucesso… ela duvida um pouco da utilidade dessa visão progressista e cartesiana “não há uma meta final. voce esta fazendo porque quer e porque pode. essa é a sua vida.”
- Ela coloca o auto conhecimento como algo contínuo “pode demorar anos para você descobrir quem você é e o que a vida pode ser” e algo que não precisa fazer sentido e ser explicado o tempo todo “como se você tivesse que justificar que você esta trocando de caminho e contar cada detalhe do seu novo plano”.
- E o que parece ser um ponto chave do livro é a questão de que um relacionamento de sucesso não tem que ser aquele que dura para sempre “Ao invés de ter medo, talvez a gente possa tentar lembrar que nosso tempo juntos sempre será temporário.”.
O livro segue entre o ar meio auto ajuda intuitivo “voce deve confiar que voce tem valor e que voce tem algo para dar. porque voce é e você tem.” e o racionalismo na hora de tomar decisões “Você pensou sobre ter filhos no último ano? Você já teve inveja das pessoas que tem filhos? Ainda parece algo que você não quer fazer?”, sempre convidativo a questionar o status quo.
Cait Flanders
Se você gostou das ideias de Cait e quer saber mais, o primeiro livro é bem rapidinho de ler, parece um blog, e já foi lançado em português como: O ano em que menos é muito mais: Por 365 dias, parei de comprar, doei meus pertences, desliguei a TV e descobri o que realmente importa da última vez que vi era menos de 10 reais na amazon.
O segundo livro ainda não tem tradução, mas é um ótimo jeito de treinar o inglês com vocabulário do cotidiano: Adventures in Opting Out: A Field Guide to Leading an Intentional Life.
E atualmente a autora não tem mais um blog (inclusive deletou todo o conteúdo que tinha), mas mantém uma conversa no seu podcast Opting Out.